No Dia Mundial sem Carro (22/9) nada mudou na vida do urbanista colombiano Ricardo Montezuma, especialista em
questões de mobilidade. Criador de uma ONG chamada Cidade Humana, só anda de
bicicleta e transportes públicos. Foi assim que se deslocou do hotel para o
Congresso Internacional Cidades & Transportes, na Barra, zona sul do Rio,
onde falou na manhã da última quinta-feira (19/9). Ao chegar, ficou impressionado: no
evento com cerca de 2 mil participantes, na Cidade das Artes, só havia uma bicicleta,
além da sua, dobrável, que carrega em todas as viagens.
Em entrevista à Folha,
se disse “emocionado” com a evolução das ciclovias no Rio e São Paulo. Mas aponta
problemas relacionados à segurança em sua implantação: “Uma boa política
pública para a bicicleta deveria começar com melhores condições para os
pedestres”.
Montezuma trabalhou na equipe da Prefeitura de Bogotá que
desenvolveu o sistema de corredores de ônibus denominado Transmilênio
(inaugurado em 2000). Embora inspirado em Curitiba e São Paulo, o sistema só passou
a ser referência para administradores brasileiros devido ao sucesso na
Colômbia. “Poucos lugares valorizam o que têm de bom. O normal é olharmos para
fora”, diz.
Crítico do Uber, pela forma “muito imperialista” como entende
que a empresa se implanta, ele entende que o aplicativo é “muito interessante”
e, se adequados à legislação local, “é bom se existirem muitos Ubers”.
*
FOLHA: O Transmilênio de Bogotá provocou polêmicas intensas
como as vias exclusivas para ônibus provocam por aqui?
RICARDO MONTEZUMA: Creio que a polêmica em Bogotá não foi
tão intensa porque o transporte público era um problema tão gigantesco que a
melhoria do sistema foi logo aceita por todos.
FOLHA: Por que o senhor acredita que o Brasil demorou para
adotar BRTs, como o Transmilênio, se eles nasceram em Curitiba?
RM: É incrível isso. Mas conheço poucos lugares que valorizam
o que têm de bom. O normal é olharmos para fora, admirar o que há nos EUA ou na
Europa. O BRT é uma invenção brasileira que realmente só veio a ser valorizada após
a adoção em Bogotá. O Jaime Lerner, criador do conceito em Curitiba, nos anos
1970, me disse: “A pessoa mais feliz do mundo com o sucesso do Transmilênio sou
eu, porque ele provou que o sistema pode funcionar fora de Curitiba”.
FOLHA: A contribuição de São Paulo para o Transmilênio foram
as áreas de ultrapassagem no corredor da av. Santo Amaro. Mas esse corredor
destruiu o tecido urbano em torno, transformou uma bonita avenida em área
degradada. Como evitar isso?
RM: Esse é o grande desafio: o BRT deve ser pensado como
projeto para as cidades, não para o transporte. Deve respeitar a cidade,
recuperar o que estiver degradado. O limite é a escala urbana. Não pode ameaçar
a qualidade de vida à sua volta.
FOLHA: No caso de Bogotá, houve resistência dos donos de
automóveis pela perda de espaço para os corredores?
RM: Não houve pressão dos donos de automóveis, não. Mas é
importante mencionar que o Transmilênio foi muito politicamente correto. Os carros
conservaram o espaço que tinham, às vezes até ganharam mais, para que não
houvesse resistência dos motoristas. E isso considero errado. Para deixar os
carros com o mesmo espaço, foram demolidas construções da cidade, o que eu
critico.
FOLHA: O senhor entende que uma vez oferecido transporte
público com prioridade, é preciso reduzir espaço para os carros, forçar os
motoristas a usarem transporte público?
RM: Não é necessário reduzir espaço para o carro mas é
necessário dar prioridade ao transporte público. Os autos, como forma de deslocamento
para ir trabalhar, são muito ineficientes. À noite são bons, sobretudo quando
não tem ninguém nas ruas. Ao longo do dia, se destaca a vantagem do transporte
público.
FOLHA: Como convencer os usuários do automóvel a mudarem de
hábito? Há sempre a alegação de que o transporte público é ruim, mas mesmo em
Londres há grandes congestionamentos.
RM: Creio que o modelo de Londres é muito significativo: os motoristas
que querem circular pelo Centro da cidade pagam pedágio caro. E esse dinheiro é
investido diretamente na melhoria da rede de transportes públicos. Nós
precisamos lembrar que o número de carros e de motos só vai crescer. O único
jeito de reduzir o seu uso é cobrar e com isso ajudar a financiar transporte
público de qualidade.
FOLHA: A ideia é melhorar a qualidade para convencer o
usuário dos automóveis...
RM: Não. É necessário melhorar o transporte público para
quem usa o transporte público, sem pensar em quem usa o carro. É preciso evitar
que o usuário de transporte público ache a qualidade ruim e queira mudar para o
carro. O usuário do carro particular
nunca vai deixa-lo por achar que os coletivos são bons. Você deve ter em
mente que a imagem do transporte público é sempre ruim, em qualquer lugar do
mundo. Mesmo na Suíça e Suécia, seus transportes públicos, excelentes, recebem
notas ruins. Em geral, mesmo os bons sistemas recebem notas em torno de seis
sobre dez.
FOLHA: Mas são notas dadas pelos usuários ou por quem não
usa e avalia a imagem?
RM: As notas são parecidas entre usuários e não usuários.
Ocorre um ciclo vicioso: mesmo quando melhora, a cobrança aumenta e a nota
volta a cair.
FOLHA: São Paulo teve um diretor de trânsito, Roberto
Scaringella (1940-2013), que dizia que o transporte público vive a síndrome de
“quanto melhor, pior”: ao atrair mais usuários, lota e a qualidade percebida
piora.
RM: Sim, a noção de melhorar dura pouco tempo. Então logo
precisa melhorar mais.
FOLHA: O Legislativo de São Paulo aprovou uma lei proibindo
o Uber. Qual sua opinião sobre o aplicativo?
RM: Eu sou muito enfático: se não é legal, deve ser
proibido. Mas deve-se criar condições para que muitas empresas como o Uber
possam trabalhar, sempre com regulação e controle público. O Uber não arrisca
nada, é uma plataforma que está na Califórnia. Todo o risco é dos motoristas
locais. Quando entra em uma cidade, o faz de uma forma muito imperialista, não
se submete a regras, entra, se implanta e cresce sem regulação. Ele é
interessante, é próprio de um mundo globalizado. Mas exatamente por isso, é
preciso respeitar as regras locais.
FOLHA: O senhor é um estudioso de ciclovias, como vê o
processo atual no Brasil?
RM: Me emociona ver que o Rio tem cada vez mais gente
andando de bicicleta. Todas as iniciativas são boas e necessárias. Mas do ponto
de vista técnico, é preciso verificar com mais cuidado a infraestrutura. Há
problemas delicados para resolver, como os cruzamentos. Aí, as pessoas a pé têm
dificuldade de atravessar. Eu prefiro avaliar as ciclovias não pelo número de
quilômetros, mas pelo número de cruzamentos bem resolvidos. Quase ninguém morre
em ciclovias mas nos cruzamentos. Sobre São Paulo, tenho muita curiosidade de
saber como foi possível implantar sua rede de ciclovias. Quero conhecer mais
sobre esse processo e pedalar na cidade.
FOLHA: Como avalia os episódios de atropelamentos de
pedestres por ciclistas em São Paulo nas últimas semanas?
RM: Não acompanhei. Mas o que posso dizer é que na América
Latina se costuma esquecer dos pedestres. Uma boa política pública para a
bicicleta deveria começar com condições para pedestres. É preciso dar
prioridade às pessoas, não aos veículos (incluindo bikes). Além disso, é
importante saber que alguns ciclistas se comportam muito mal, como os maus
motoristas de automóveis.
FOLHA: Você acha que nossas cidades cuidam pouco dos
pedestres?
RM: Os pedestres não têm ativismo político. Há muita
militância de ciclistas e nada de pedestres. A bicicleta está na moda e os
pedestres não.
FOLHA: Uma pergunta que sempre fazem em congressos de
mobilidade: como o senhor foi para o evento?
RM: De bicicleta. Estou num hotel, fui de bicicleta até o
BRT e com ele fui até a Cidade das Artes. Lá descobri que havia só uma
bicicleta, além da minha.
FOLHA: O senhor fez uma conferência sobre humanização das
cidades. Qual sua receita para isso?
RM: Duas dificuldades devem ser superadas: (1) os políticos
não têm vontade, liderança e nem institucionalidade para fazer as mudanças que
devem ser feitas; (2) os cidadãos: não entendem bem os desafios da mobilidade,
seguem pensando no conforto individual e a maioria das pessoas simples prefere
usar moto. Além disso, na América Latina, acostumamos mal os motoristas, dando
a eles a impressão de que a velocidade é um direito. Não é: a velocidade do
automóvel é uma ameaça.
Foto de Ricardo Borges/Folhapress
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